Andrea Beltrão se despe em cena, ao encarnar Antígona. Ligeira e carioca, se põe transparente – e, mesmo assim, ou por isso, dá conta da espessura da tragédia grega.
Ao celebrar 40 anos de teatro, em seu primeiro monólogo, ela dá a mão ao espectador – e o coloca no colo, por assim dizer. A ele conta uma estória, com gosto e vontade, mobilizando todos os seus recursos, acumulados em décadas de dedicação ao ofício teatral. Religa, desse modo, Teatro e Contação de Estória, conexão que jamais pode ser perdida.
Daqui por diante, todo operário das artes do palco deveria se perguntar: minha peça é uma estória bem contada?
Beltrão dá ao espectador um Teatro Sincero. A atriz não busca ser o que não é. Ela é ela mesma (o que não é pouco) e dá voz a outras personagens, numa rapidez que – em alguns momentos – remete a Marília Pêra, a Grande! Claro, essa escola circula pelas veias de Beltrão.
Só Pêra era capaz de conjugar amor e dor na velocidade de um raio – e saltar de um polo ao outro, com agilidade surpreendente. E pousar em pé!
Deslizando pelo palco e pela plateia, desmanchando fronteiras, Beltrão não perde o fio: a peteca não cai de sua mão! Senhora da cena, do começo ao fim.
Contada do ponto de vista de Antígona, a tragédia reafirma sua universalidade e atemporalidade. Que texto! E a maturidade da atriz dá a densidade que a peça exige.
Beltrão toma pra si a obra, abocanha e deglute, rumina e metaboliza, e compreende cada sílaba do que diz.
Temos ali em cena apenas ela, Beltrão – e um cenário muito simples. Painéis com nomes, formando uma árvore genealógica (é uma aula?). Poucos objetos de cena: uma cadeira, uma colcha, um armário pequeno. Poucos figurinos, um par de sapatos, um par de tênis, um casaco, um cachecol. O que mais?
O palco, assim, se despe também: quase nenhum ilusionismo. Não sobra a Beltrão alternativa que não revolver as tripas e funcionar na raça.
Volto a Marilia Pêra. Há um ano e meio ela nos deixa… Recentemente, por acaso, encontro um homem de teatro. Na padaria. Ele me diz que ainda não se recuperou dessa ausência. Refere-se a Marília Pêra. Claro que não. Há coisas para as quais não há recuperação.
Entretanto, depois de assistir ao monólogo de Beltrão, concluo: Marília anda solta por aí. Há um legado que Ela deixa – que tem, entre tantas outras coisas, algo a ver com o “prazer do palco”.
Talvez possamos devorar gestos e falas, entonações e escolas, linguagens e talentos daqueles a quem admiramos – e que partiram. Poderíamos nomear esse gesto de “roubo benigno”? Explico.
Não há como fazer funcionar um texto de Sófocles sem operar no limite. Sem cometer algum sacrilégio – ou sem recusar-se a fazê-lo, no caso em que essa recusa resulta igualmente em profanação, tema da peça “Antígona”, justamente. Não há conforto!
No teatro Anchieta, do SESC Consolação, através de Beltrão, ouve-se a voz do dramaturgo – atravessando milênios e tocando nossos corpos.
Como se sabe, na tragédia, Antígona toca o corpo do irmão morto. Cobre o corpo morto de pó e de terra. Nesse gesto, ao ameaçar enterrá-lo, ela transgride uma LEI – e o faz para ser fiel a outra LEI.
Andrea Beltrão, da mesma forma, ousa regurgitar seus mortos queridos. Na preparação do espetáculo. Nos ensaios pregressos. Na temporada: ela repete esse gesto transgressivo a cada noite.
E, a cada sessão, hereticamente, ela desenterra e enterra outros corpos mortos. Canibaliza outras atrizes que circularam pelo palco antes dela. E, então, o milagre: pela sua boca ampliada, a dela e a dos ausentes – multidão -, o melhor do teatro se dá a ver.
Não! Andrea não tira a roupa durante a peça – mas nunca esteve tão nua! Nem tão só. Nem tão bem acompanhada.
Em nome da coerência, levando ao pé da letra o raciocínio aqui esboçado, desembarcamos numa afirmação: nenhum monólogo é um monólogo!
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com