Texto: Ferdinando Martins
Fotos: Bob Sousa
Depois de represada pelo isolamento da pandemia de Covid-19, a cena paulista voltou efervescente em 2022. Críticos, jornalistas e jurados comentavam, à boca pequena, que não estavam conseguindo acompanhar tudo, pois foram muitas estreias, uma atrás da outra, várias por semana. Essa queixa, no entanto, era quase sempre acompanhada de um sorriso de satisfação, com o deleite de ter novamente convívio, abraços e saudações. Empenho, boa vontade, acertos nas políticas públicas no estado e no município e necessidade de fazer teatro garantiram um ano com muitas atividades teatrais, superando o desmanche da política federal e as dificuldades de financiamento.
Neste final de ano, inauguramos aqui a parceria Bob Sousa/Ferdinando Martins que irá se estender ao longo de 2023.Nossa ideia é registrar e analisar a cena contemporânea por meio da fotografia e da crítica, colocando essas duas instâncias em um mesmo patamar, tratadas com igual importância. Considerando que a fotografia possibilita experiências que não se traduzem em palavras, para nós a imagem não ilustra o texto, mas com ele estabelece um diálogo. Buscamos as ressonâncias entre o que se vê e o que se escreve. Como um primeiro exercício, selecionamos aqui cinco destaques deste ano que termina. Em breve, outros espetáculos irão aparecer.
Ponto de inflexão no teatro brasileiro, História do Olho – um conto de fadas pornô-noir estreou na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp, co-produtora do espetáculo. Janaína Leite transformou o livro de Georges Bataille em algo grandioso, inflando o texto com autoficções, imagens oníricas, fantasias, músicas e celebrações de uma sexualidade que veio sem amarras, valendo-se das brechas do inconsciente para deixar fluir o que a moralidade burguesa havia represado. Desde Festa de separação, o trabalho da Janaína desenvolve-se como um fractal, transformando em vida a pulsão de morte e caminhando, em suas próprias palavras, do real documental ao real obsceno. História do Olho é resultado de um trabalho continuado de pesquisa cênica e intelectual, que arregimenta para si a complexidade de autores como Jacques Lacan e Júlia Kristeva. Esse conto de fadas celebra a vida enquanto eclodem novas epistemologias do sexo e da arte.
Concebida como parte de um díptico, a montagem de As Três Irmãs, da Companhia da Memória, foi um dos acontecimentos teatrais mais instigantes do ano. Fazendo par com A Semente da Romã, de Luis Alberto de Abreu, o texto de Anton Tchekov foi apresentado no teatro Sesc Pompeia, cuja arquitetura de Lina Bo Bardi mostrou-se ímpar para esse experimento cênico. O palco foi dividido para que as duas montagens pudessem ser apresentadas simultaneamente. Em alguns momentos, cenas vazavam de um lado para outro, remetendo o espectador a mundos paralelos, ao teatro visto em frente e verso. Tudo em As Três Irmãs era precioso, delicado e singelo: a elegância de Ondina Clais contrastando com a irreverência de Lucia Bronstein, a inteligência de Marina Nogaeva Tenório e Ruy Cortez na direção, a presença respeitosa de Walderez de Barros e Antônio Petrin. Em cartaz antes das eleições, As Três Irmãs ressoavam os temores de um futuro incerto, de um país entregue à barbárie que se refugiava na esperança de voltar a ser o que era.
Nesses tempos em que tudo se torna insólito, O que nos mantém vivos? foi atrás do que ainda é essencial. Cada um tem de nós tem algo que nos estrutura e a pergunta do título, neste caso, é mais instigante que qualquer resposta. O Teatro Promíscuo de Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas revisitou novamente a obra de Bertold Brecht, agora com direção do Rogério Tarifa e Débora Duboc no elenco. A soma de tantos artistas irreverentes recuperou o humor brechtiano, muitas vezes esquecido nas montagens brasileiras do autor. A crítica social não precisa ser sisuda para desalienar, consciência e afetos não se separam. A leveza e o riso são armas poderosas contra o fascismo e a intolerância. O que nos mantém vivos? foi também a celebração dos 65 anos de carreira de Borghi, que permeou o espetáculo com reminiscências de sua trajetória. É um espetáculo longo e delicioso, como todos do Tarifa, barroco em sua proliferação de formas, épico em seus princípios formais e éticos, cativante em todos os sentidos.
Gesto, texto de Sílvia Gomez e direção de Vanessa Bruno, foi outra celebração que marcou os 40 anos do Centro de Pesquisa Teatral, do Sesc Consolação. O delírio instiga Sílvia Gomez. É tema de sua pesquisa de mestrado na USP e vem ocupando cada vez mais espaço no seu trabalho. Em Gesto, personagens chegam a um hospital relatando inexplicáveis sensações, sintomas desconhecidos no corpo e no estado mental de cada um. A metáfora mais próxima remete aos absurdos da polarização política no Brasil e aos efeitos da pandemia de Covid-19. Mas é mais que isso. Gesto toca na impermanência de qualquer certeza, na instabilidade do conhecimento e na falta de clareza sobre onde termina o real e onde começa a imaginação, se é que algum limite entre eles seja possível. Louvável, também, o cuidado que o Sesc está demonstrando com o legado de Antunes Filho, para o qual Gesto é uma expressão candente.
Foi ano também da retomada dos festivais. O maior deles, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, o Mirada, no Sesc Santos, teve Portugal como país convidado. No ano que o Brasil celebrou 200 anos de sua independência, rever as relações como nossa antiga metrópole foi um exercício necessário. Com texto e direção de Joana Craveiro, o espetáculo de estreia, Viagem a Portugal, última paragem ou o que nós andámos para chegar aqui, do Teatro do Vestido, insere-se em uma perspectiva crítica ao país e sua história, à herança dos 48 anos da ditadura salazarista e à impossibilidade de ancorar qualquer identidade em um ponto fixo. Mais ainda, é sobre a necessidade do teatro quando o documentário está desacreditado como verdade e o que pode a arte ainda nos dizer.
Não foi um ano fácil. Nenhum é. Mas foi um ano que pudemos sentir com mais intensidade a presença de nossos pares. Para Jorge Dubatti, o teatro é uma poética que exige convívio e era disso que estávamos precisando.
Bob Sousa é fotógrafo, pesquisador e mestre em artes pela Unesp. É crítico de artes visuais/APCA e Prêmio Arcanjo de Cultura
Ferdinando Martins é jornalista, sociólogo e professor da ECA-USP. É jurado os prêmios Shell, APCA e Bibi Ferreira.