“Uma foto da fábrica Krupp não revela quase nada a respeito dessa organização”. O alemão Bertolt Brecht, autor da frase, inserida na obra “Santa Joana dos Matadouros” (1931), certamente sabia que não pode ser possível compreendermos muito a partir de uma foto. A fotografia traz a falsa sensação de que é possível conhecermos o mundo tal como a câmera consegue registrá-lo, e que as imagens fotográficas poderiam oferecer pistas que viessem a ajudar quanto à compreensão do presente e do passado; entretanto, a representação da realidade pela câmera oculta mais do que revela.
Alguns anos antes, em 1928, estreia em Berlim, de Bertolt Brecht, em parceria com Kurt Weill, “Ópera de três vinténs”, que apresenta a história de Mackie Messer e seu amor por Polly, a filha do inimigo J.J. Peachum, conhecido como “Rei dos Mendigos”, pois vestia sua gangue como deficientes ou mendigos e os mandava pedir esmolas. Nesta obra, Brecht critica as desigualdades sociais na Alemanha da sua época. A crítica anterior ecoa e reverbera no Brasil na versão de Chico Buarque, que estreia em 1978 o musical “Ópera do malandro”, em meio à ditadura civil-militar.
Em 2014, a Cia. da Revista, uma das mais produtivas companhias teatrais da cidade de São Paulo – que completava 18 anos de investigações acerca do Teatro de Revista, entre outras linguagens – leva aos palcos da cidade sua versão de “Ópera do malandro”, sob a direção geral de Kleber Montanheiro e direção musical de Adilson Rodrigues.
Como a história aponta, e de acordo com as palavras do próprio diretor e fundador da Companhia, “[…] estamos girando em falso, numa roda viva que parece não ter fim”. A versão da Cia. da Revista pretende discutir a fragilidade da sociedade atual, que se mostra cada vez mais incapaz de organizar um pensamento que aproxime as massas. Tal fragilidade conduz – e reinventa permanentemente – o antiquíssimo tipo de malandragem, denominado de “o jeitinho brasileiro”, cujo sentido concerne à “[…] tentativa de ‘se dar bem’ não importa a que custo, nem que pra isso seja preciso suprimir o outro”, escreve Montanheiro.
O que se vê em cena é um trabalho belíssimo de cenografia e figurinos, criados também por Kleber Montanheiro, e um elenco aguerrido, formado por Adriano Merlini, Bruna Longo, Daniela Flor, Gabriel Hernandes, Gabriela Segato, Heloisa Maria, Luiza Torres, Natália Quadros, Nina Hotimsky, Paulo Vasconcelos, Pedro Bacellar e Pedro Henrique Carneiro, que transporta para o palco a maioridade adquirida nos anos de pesquisa.
Para se somar ao numeroso elenco requerido pela obra, a companhia convidou os atores e atrizes Alessandra Vertamatti, Erica Montanheiro, Flavio Tolezani, Gerson Steves, Mateus Monteiro e os músicos Beto Sodré, Chico Filho e Demian Pinto.
Do entrelaçamento histórico entre os três períodos em que a obra é apresentada, o que se percebe é a eclosão de regimes ditatoriais instalados no seio das sociedades. A Europa, de Bertolt Brecht, no final da década de 1920, gesta ditaduras sangrentas que culminaram posteriormente nos regimes ditatoriais de Hitler, Franco, Salazar e Mussolini. O Brasil, de Chico Buarque, na década de 1970, vive o paroxismo da ditadura civil-militar e seus “atos institucionais”, seguidos de processos de luta por estudantes e a população em geral. A sociedade atual vive a ditadura da imagem em que predomina certa tendência espetacularizante e o culto à (auto)imagem num sistema industrial avançado que requer uma cultura com base nas imagens. A câmera define a realidade para o espetáculo (das massas) e para a vigilância (do governo).
Assim como a fotografia que preenche lacunas em nossas imagens mentais que podem incitar a consciência – mas não é capaz de se tornar um conhecimento ético ou político –, viver numa sociedade cercada de imagens que estimulam o consumo e anestesiam as diferenças de classe, raça e gênero pode nos ocultar as facetas de uma ideologia dominante.
Para esses malefícios, a Cia. da Revista convida a cantar a plenos pulmões o excerto de obra de Chico Buarque de Hollanda:
“Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais […]”