O filósofo alemão Walter Benjamin, em “A pequena história da fotografia”, define a aura como: “[…] a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Em razão disso, a fotografia tem a peculiaridade de substituir a presença de algo que já esteve ali de fato. É a substituição metonímica, em um suporte de
papel ou digital, de alguma evidência, de um acontecimento. Ao mesmo tempo em que atesta a ausência do referente, se coloca como representação do mesmo, e essa distância potencializa o registro fotográfico a uma capacidade de combinação visual, sobretudo da lembrança. Philipe Dubois afirma que “[…] uma foto é sempre uma imagem mental, ou, em outras palavras, nossa memória só é feita de fotografias”.
Foi a partir desses dois pensamentos que pude imbricar as imagens mentais do jornalista Adriano de Castro e as fotografias do espetáculo Jacy, que fotografei em 2017.
A peça “Jacy”, vista ao lado da minha companheira no verão de 2017, retrata de forma poética a vida de uma desconhecida, que empresta o próprio nome à peça. A proposta do trabalho cênico é apresentar ao mundo uma mulher cujos pertences foram descartados numa rua de Natal, no Rio Grande do Norte, após sua morte: uma frasqueira com seus documentos, papéis que voavam ao sabor do vento e sem qualquer preocupação, pois jamais voltariam a ser procurados pelas pessoas que
viveram com Jacy.
A pasta e os papéis tiveram a sorte de motivar um trabalho com alto nível de beleza do começo ao fim da peça, com o elenco de dois gigantes em cena: Henrique Fontes e Quitéria Kelly, mas com uma equipe em que o texto é assinado por Henrique Fontes, Pablo Capistrano e Iracema Macedo; Fontes ainda é responsável pela direção e pela dramaturgia, esta ao lado de Capistrano; e o cineasta é Pedro Fiúza. Pelo impacto que causa, a peça parece fruto de um exército na casa dos milhões de pessoas.
Jacy morreu sem saber que haveria um espetáculo pra retratar sua saga. Ela viveu bastante tempo e passou por muita coisa, viu o mundo passar por transformações, o Brasil transcorrer décadas e décadas ao longo do século 20, mas só não viu o mundo chegar a um momento em que o ser humano deixasse de ser descartável como a sua pasta, que no fundo representa especialmente o descarte do velho, mas também um pouco de todos nós, participantes do mundo líquido moderno do Zygmunt Bauman.
Impossível não registrar boas imagens da peça. Nenhum detalhe deixa a desejar, e a peça coloca toda a plateia em busca da identidade da Jacy, contemplando os recursos audiovisuais, a música, as atuações, a direção, tudo impecável. E toda essa beleza foi registrada pela lente mágica do Bob Sousa, pura poesia de ser ver e de
se rever sempre. Eu mesmo estive numa cidade que nunca conheci, Natal, e num tempo anterior ao meu nascimento.
Sair do teatro depois de uma apresentação tão digna de elogios é um prazer tão grande quanto a certeza de que a verdadeira Jacy se orgulharia profundamente de ter se visto sob a ótica do Grupo Carmin, não à toa aplaudido de pé num Sesc Pinheiros com a nobre presença do saudoso Antunes Filho pra coroar a noite de gala de
“Jacy”.