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Bravíssimo | João Bethencourt por Rodrigo Murat

Publicado em: 05/06/2014 |

Introdução do livro “O locatário da comédia” (2007), de Rodrigo Murat, para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial (leia a obra na íntegra)

 

Um homem não sabe quantos pais tem.

 

Esta evocação poética coroa o artigo que Domingos Oliveira escreveu para o jornal O Globo na virada do ano, quando, ao assomo dos fogos de artifício que caracterizam os réveillons, outro veio se sobrepor – fogo triste e nada fulgurante: a morte de João Bethencourt.

 

João faleceu nas penúltimas horas do dia 31 de dezembro de 2006, após três dias de complicações hospitalares. Estava lúcido. Lúcido e combativo. Não por acaso, no dia 27, pouco antes de começar a sentir-se mal durante a madrugada, participou de uma reunião na Sbat – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – onde defendeu com a garra costumeira seus pontos de vista nos rumos da sociedade que ajudou a manter de pé em tempos de crise e que neste 2007 completa 90 anos. 

 

João era assim: tinha oitenta e poucos na identidade mas na cabeça não mais que 20. Soprava-lhe o vento fresco dos iniciantes. Quando sabia de algum concurso de dramaturgia e ligava para ele – E aí, João, vamos participar? – a resposta era afirmativa e quase sempre acoplada a outra pergunta: Você não conhece nenhuma editora de livros? (João estava às voltas com os originais de TeleChoque, romance infanto-juvenil que me deu para ler). Ou seja, João viveu como os sábios: ciente de que é do zero que se ergue o dia. 

 

Tenho a pretensão de acreditar que eu tenha sido o último amigo que João fez nestes dois últimos anos em que a vida nos aproximou por causa da biografia. (As entrevistas foram realizadas entre os meses de março e maio de 2005, com encontros posteriores para correções e adendos feitos com sua caligrafia de médico.) Conhecidos nós fazemos o tempo todo mas amigo-amigo, daqueles para quem se liga ou se envia email após determinado período de distanciamento – cordas que se esticam ameaçando romper-se – esses são raros e pontuais. 

 

Num dos emails ele me escreveu: Prezado Rodrigo, você sumiu porque a fortuna anda te farejando? Traga um pouco dela aos amigos. (…) Escreva. Aliás foi o que disseram ao Molnár (Férenc Molnár, autor húngaro de Os Meninos da Rua Paulo) na estação de trem enquanto se despedia da família: ´Escreva´! E assim tornou-se um escritor. Abraços. João. 

 

Abraços também, João. Foi um prazer radiografar-lhe a trajetória neste volume da Coleção Aplauso que, espero, sirva também como fontes de diversão e cultura a seus leitores. Afinal, a história não acaba quando termina. Ela começa. 

 

Portanto, comecemos.

 

II

 

Um dos primeiros espetáculos teatrais adultos a que assisti nos meus verdes 13 anos – Festival de Ladrões – foi no antigo Teatro Mesbla, que ficava na Cinelândia, na hoje praticamente extinta vesperal de domingo das 6 horas da tarde, com os saudosos Milton Moraes, Alberto Perez e André Villon em cena. Assinando texto e direção um nome que meus ouvidos começariam aos poucos a associar a padrão de sucesso. 

 

Não me recordo muito do enredo mas deve ter me sido satisfatório pois, meses depois, lá estaria eu forrando um dos assentos do igualmente lendário Teatro Copacabana nas fanfarronices de O Senhor é Quem?, onde um abilolado Jorge Dória contracenava a maior parte do tempo com um telefone na tentativa desesperada de descobrir afinal quem ele era. A identidade do autor e diretor todo mundo sabia e eu, mais uma vez, tinha a oportunidade de comprovar-lhe a habilidade de reger uma platéia com staccatos de riso. 

 

Quinze anos depois, no ano de 1995, frequentei, como ouvinte, a cadeira de Dramaturgia que João Bethencourt – ei-lo, o autor e diretor das supracitadas peças – comandava na Faculdade de Artes Cênicas da Uni-Rio. Iniciava-se ali uma amizade em fogo brando, alimentada por encontros espaçados mas suficientes para manter a chama do interesse recíproco. 

 

Posso dizer que João é meu padrinho artístico pois foi com um de seus pontapés certeiros que um texto meu saiu da gaveta e foi cair no centro do gramado, com quatro temporadas bem-sucedidas em São Paulo e no Rio de Janeiro, além da turnê por várias capitais e cidades do interior do país, entre 2001 e 2005. 

 

A inspiração de escrevê-lo surgiu quando o mestre contou em sala de aula o enredo de um drama que vinha fazendo muito sucesso na Broadway – Three Tall Women, do Edward Albee – e cujos direitos Beatriz Segall, mais que depressa compraria, co-protagonizando com Natália Timberg e Marisa Orth o espetáculo Três Mulheres Altas, sob a batuta de José Possi Neto. Adorei a inventidade da trama (três personagens que dialogam entre si mas que, no segundo ato, descobrimos tratar-se da mesma mulher em três momentos etários diferentes) e achei que o título dava paródia. O título, não a trama. 

 

Nascia assim, a partir da brincadeira com o nome, Três Homens Baixos. Depois foi só criar os três personagens e reescrever ad nauseum – entre a exaustão e a euforia – cenas e diálogos ao longo dos seis anos que o texto levou para levitar do papel e ser verticalizado no palco por intermédio dos atores. 

 

Quatro leituras dramáticas foram realizadas, duas sob os auspícios de João. A primeira, em sala de aula, feita por mim, timidamente. Mesmo assim, João riu; Margot, sua esposa, gargalhou; alunos se divertiram. João sugeriu mudanças, especialmente na parte final – de fato precária – e eu as fiz. 

 

Uma segunda leitura, em escala mais profissional, foi realizada pelos atores Antônio Calloni, Mario Borges e Flávio Antônio, em Seminário de Dramaturgia realizado no Teatro Villa-Lobos por João e Edwaldo Cafezeiro. 

 

Mais duas seguiriam-se: uma na Casa da Gávea, no Rio de Janeiro, sob direção de José Renato, e outra como cereja da festa de lançamento do 4o volume da Coleção Teatro Brasileiro, organizado por Soraya Hamdan, no qual o texto está publicado, com Tarcísio Filho, Petrônio Gontijo e Marco Antônio Pâmio dirigidos pela talentosa Bete Coelho, no Teatro Augusta, em São Paulo. 

 

Finalmente encenada por Fernando Guerreiro, Três Homens Baixos utilizou diversos atores em suas muitas temporadas, alguns dos quais ex-colaboradores de João, como é o caso de Gracindo Jr. (em O Jogo do Crime), Jonas Bloch (em Camas Redondas, Casais Quadrados)e Rogério Cardoso (em Lá em Casa é tudo Doido; Mulher, Melhor Investimento; Brejnev Janta o seu Alfaite). 

 

Dentro do contexto da comédia de costumes de teor, digamos assim, pérfuro-picante, Três Homens Baixos é prima caçula de A Venerável Madame Goneau, que João escreveu, e sobrinha-neta de A Gaiola das Loucas, que ele não escreveu, mas traduziu e adaptou. 

 

Quando soube que ele fora assistir à minha peça e que dera boas risadas, percebi que o círculo ali se fechava. Aquele que me fizera sorrir nas memoráveis vesperais cariocas dos anos 70, agora se divertia com as minhas piadas (algumas inspiradas, outras toscas). Nada mais natural que ele fosse um dos meus eleitos para o raio X da Coleção Aplauso. 

 

III

 

Conversar com o dramaturgo, produtor, tradutor, diretor e divertidíssimo húngaro acariocado João Bethencourt era entrar em contato com uma usina de idéias prestes a explodir em meio a feromônios juvenis. Se ele escreveu dezenas de peças, ainda não tinha outras tantas concluídas, mas elas estavam todas lá, semiprontas, no arquivo da memória RAM. Era abrir e vasculhar. 

 

Das mais famosas, muitos haverão de se lembrar de Bonifácio Bilhões, O Dia em que o Alfredo Virou a Mão, Tem um Psicanalista na Nossa Cama, A Venerável Madame Goneau, O Senhor é Quem?, Frank Sinatra 4815, O Dia em Que Raptaram o Papa. 

 

Esta, em especial, é um fenômeno à parte, dessas sortes grandes que a dramaturgia de um país tira de tempos em tempos. Parida em 1972 num assomo de criatividade – a única que João garantia ter escrito de uma só tacada –, vem sendo sistematicamente encenada ao longo destes 33 anos em muitos países da Europa e da América Latina. Já esteve também em cartaz nos Estados Unidos e no Canadá, mas os países recordes em montagens são a Alemanha e a Áustria. Recentemente esteve em Viena e, para breve, prometem novas encenações. (Outro dia saiu nota em jornal anunciando a estréia no Vaticano. Efeito da visita de Bento XVI?) 

 

Não só o Papa cruzou o Atlântico: Bonifácio Bilhões, O Dia em que o Alfredo Virou a Mão, O Padre Assaltante e Como Matar um Playboy foram assistidas na Bélgica, Áustria, Inglaterra e não param de ser encenadas. O Padre foi montado recentemente na Áustria e Bonifácio esteve em cartaz na Finlândia. 

 

João – também ele, não apenas suas peças – viajou para o exterior a trabalho. Além de cursar dramaturgia na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, esteve em Lisboa a convite do famoso ator luso Raul Solnado; em Londres, onde codirigiu Alec Guiness e em Amsterdam, quando teve a chance de comandar a encenação de seu Bonifácio Bilhões em holandês. Isso sem falar uma palavra da língua. Para se virar com os atores, ia de mímica a inglês e, para decifrar a versão feita pela mulher do produtor, pegava carona no alemão, línguas que dominava bem, além do francês, do espanhol e do português. 

 

Tanto poliglotismo se explica porque João nasceu em Budapeste e, ainda garoto, se mudou com a família para o Rio de Janeiro, ali fincando sua bandeira transnacional. Desde cedo interessado em atividades literárias, nem por isso negligenciou o aspecto comercial da vida, que o levou, ainda jovem, a exercer variadas atividades. Se por um lado cuidava da fazenda do pai, vendia inseticida, loção para barba, colhia maçãs nos Estados Unidos, por outro freqüentava as altas rodas do Country Club e as famosas domingueiras literárias na casa de Aníbal Machado, pai de Maria Clara e avô de Pluft, o Fantasminha. João também foi amigo de Nélson Rodrigues, Décio de Almeida Prado, Oscar Ornstein, Antônio Cândido, Millôr Fernandes, Stélio Roxo, Pedro Balász, José Renato e Jorge Dória. 

 

Com esses últimos formou a Santíssima Trindade dos três Jotas – José, Jorge, João –, responsáveis por sucessos que marcaram a história do teatro brasileiro. Com Zé (José Renato, um dos fundadores do Teatro de Arena), trabalhou por diversas vezes, e até se associaram em algumas produções; com Dória emplacou, pelo menos, duas grandes temporadas: A Gaiola das Loucas e O Avarento. 

 

O casamento com Margot durou 46 anos e dele vieram os filhos Cláudio e Cristina e os netos Victor, Clara, Pedro Estevão e Sophia Helena. 

 

João era uma cachoeira de riso. Da manga de seu paletó brotava uma piada atrás da outra. Ao contar-lhe, por exemplo, que um amigo achava que ele aparentava 70 e não 80 anos, a réplica veio na lata: Que ótimo! Isto significa que quando eu tiver 110, vou estar com cara de 100! 

 

Além de germinar o grão do humor por onde passasse, João tinha o hábito de mascar uma cigarrilha noir apagada. Revelou que vez por outra a acendia e que suportava o hobby por admirar o gosto do tabaco. É a minha chupeta. Herança do tempo em que pitava cachimbo. (Reza a lenda que durante ensaio teatral teria dado uma cachimbada num ator relapso.) 

 

Outro de seus hobbies era o chocolate. Não à toa um dos encontros – invariavelmente regados a capuccino – foi selado com chocolate amargo holandês, além da doce presença de Margot. Afinal, era véspera de Páscoa; a Holanda, para João, era logo ali; e o melhor humor é mesmo o amargo. 

 

Entre os vícios do passado – tênis, natação, xadrez. Chegou a disputar com o vice-campeão carioca Erbo Stenzel. No meio da partida, em posição para lá de vantajosa, fez juntar gente ao redor. Todos queriam saber quem era o garoto que dava uma lambuja no craque. Pronto. Foi o suficiente para que nosso João começasse a meter os pés pelas mãos e se desferisse um xeque-mate. 

 

Como tenista era ótimo dramaturgo. Consta que faltava-lhe coordenação motora e que, quando a bola vinha em sua direção, invariavelmente acendia-se-lhe uma lamparina shakespeariana: 

 

To win/or not to win/that´s the question! 

 

Nos tempos de nadador do Botafogo chegou a conquistar uma medalha de bronze. Mesmo assim o treinador o repreendeu porque nosso atleta amador bracejava olhando para trás. A resposta, claro, veio divertida: É que eu estava querendo ver quem chegaria em quarto. 

 

Convenhamos: quem trabalhou com os maiores atores e ainda teve e tem peças encenadas na Alemanha, Áustria, Itália, França, Espanha, Portugal, Grécia, Israel, Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Iugoslávia, Estados Unidos, México, Argentina, Venezuela, Uruguai, Holanda, Bélgica, Suíça – além do Brasil, Paquetá e Júpiter – tinha mais era que se conformar. Se Deus não dá asa à cobra, que dirá a dramaturgo.

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