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História e criações do Teatro Experimental de Alta Floresta

Publicado em: 28/04/2020 |

Este texto faz parte de uma série de publicações que reúne artigos, entrevistas e depoimento sobre grupos de teatro do Brasil.

O Teatro Experimental, de Alta Floresta, tem quase a mesma longevidade da cidade que o acolhe. O município no norte do Estado de Mato Grosso foi estabelecido em 1976, e, quando ainda dava seus primeiros passos, já tinha gente inquieta pronta para instaurar as artes cênicas naquele pedaço de terra idílico, porta da entrada sul para a região amazônica. Rapidamente, o coletivo se estabeleceu como um dos mais arrojados e produtivos do território setentrional. A SP Escola de Teatro bateu um papo com o grupo, como parte das ações da série Andanças pelo Teatro Brasileiro.

Processos criativos

O Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF) atua desde o ano de 1988. Com isso, tem uma relação considerável de montagens. Muitas circularam somente no município, outras chegaram a participar de eventos e festivais no Estado, ou circularam por cidades de Mato Grosso, notadamente na região norte (que preferimos tratar como Amazônia Mato-grossense), onde está localizada a cidade. Atualmente o currículo do TEAF conta com o total de 63 montagens, sendo: 23 infantis – das quais duas de teatro educativo, duas remontagens e uma resultante de curso ofertado pelo grupo; 40 adultas – dos quais três foram de teatro educativo, duas resultantes de curso e seis montagens de “A Paixão de Cristo”, cujas produções e o elenco-base eram do grupo, e envolviam cerca de cem pessoas da comunidade.

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O coletivo tem uma trajetória iniciada no movimento de teatro amador e ao longo do tempo foi experimentando diferentes formas de se relacionar com o teatro e de fazer teatro. Atualmente se reconhece como integrante do movimento do teatro de grupo. Por conseguinte, dado também sua característica de ser um grupo que foi se autoformando para o fazer teatral a partir das experiências proporcionadas pelas montagens, muitas foram as formas com que se relacionou com seus próprios processos criativos. Mas, observando a trajetória do TEAF, hoje apontamos como destaque montagens que buscaram levar à cena questões relacionadas com o contexto da cidade e da formação (ou reocupação) da Amazônia Mato-grossense a partir dos projetos de colonizações privadas iniciadas na década de 1970.

Dentre estes espetáculos estão “Fragmentos de Vida” (1996/2006), primeiro trabalho com dramaturgia própria, cuja organização dramatúrgica e direção foram de Agostinho Bizinoto, membro fundador e um dos mestres do TEAF; “Bateia”, texto também de Agostinho Bizinoto, estreado em 1999, com reestreia em 2003; “A Santa Joana dos Matadouros” (2012), de Bertolt Brecht, sob a direção de José Regino, membro do grupo Celeiro das Antas, de Brasília; e “concreto CONTRA-FLECHA” (2017), dramaturgia de Lúcio Pêssoa (autor de Pernambuco) e direção de Eduardo Machado – este no repertório atual.

Elaboração dramatúrgica e composição da cena

“Fragmentos de Vida” estreou em 1996 e se manteve no repertório do grupo até 2007, sendo que em 2006 houve uma remontagem, em que o espetáculo passou a ser encenado em espaço aberto, próximo a lagos e/ou fragmentos de floresta. A dramaturgia partiu de estudos sobre a formação da região e o texto foi organizado por Agostinho Bizinoto com produções de autores diversos, dentre os quais o próprio Agostinho e outros membros do TEAF. A encenação foi concebida para espaço convencional (muito embora a cidade não dispusesse de teatro à época, e todos os espaços fossem, em última análise, alternativos) e transcorria com “flashs”, como dizia o diretor e dramaturgo, que retratavam períodos da história local, desde a expulsão dos índios, chegada de colonos advindo da região sul (na maioria do Paraná), a invasão dos garimpeiros e problemas vivenciados pela cidade naquele início dos anos de 1990, como o desmatamento, queimadas, dificuldades de transporte com estradas precárias, doenças comuns na região e a uma forte crise na geração de energia elétrica (à época produzida com motores estacionares sucateados movidos a diesel).

Já na segunda montagem, em 2006, o espetáculo assumiu o espaço alternativo e passou a ser encenado próximo a fragmentos de mata e/ou às margens de lagos. Buscou aproximar sua estética e plástica às realidades e recursos disponíveis pelos primeiros moradores, tais como: luz totalmente produzida com tochas, lanternas a pilha, lampiões a gás, lamparinas e cilibrin (refletores comumente utilizados em caçadas) alimentado por bateria automotiva.

Cena do espetáculo “Fragmentos de Vida”. Foto: Divulgação

Na primeira montagem, todos os efeitos sonoros e de luz eram operados por técnicos. Já na segunda, a luz passou a ser manipulada pelos atores, dentro da cena, e um técnico. O único recurso tradicional do teatro eram filtros (gelatinas) que em algumas cenas eram colocados à frente dos fachos de luz das lanternas ou cilibrin por um técnico. Os demais elementos levados à cena foram colhidos a partir de pesquisas, como motor serra (que era acionada em cena), facões, figurinos com roupas comuns etc. Diferentemente da primeira versão, onde alguns elementos eram réplicas feitas em madeira e ou por efeitos de sonoplastia.

Em “Bateia”, texto também de Agostinho Bizinoto, estreado em 1999 e reestreado em 2003, cuja dramaturgia buscou se inspirar e retratar, de maneira ficcional, o garimpo de ouro na região. A cenografia reproduzia um barraco coberto com lona plástica e alguns objetos comumente encontrados nas moradias improvisadas em meio à floresta. Era uma montagem concebida para espaço à italiana que facilmente conseguíamos adaptar em espaços bastante precários na região, como igrejas, salões paroquiais, associações, escolas etc. Foi uma das peças que mais circulou no norte mato-grossense.

Para “A Santa Joana dos Matadouros”, a motivação principal foi a oportunidade de discutir o funcionamento do sistema capitalista a partir do mercado da carne. A Amazônia Mato-grossense tornou-se ainda na década de 1990 um grande polo pecuário que levou a agropecuária se tornar a base da economia local e regional. Por consequência, atividade também responsável por avanços de desmatamentos, concentração de renda, detentora de fortes influências nas instâncias de poder etc.

Na encenação, optamos por localizar o texto na região a partir de inserção de elementos como a chuva (em substituição à neve, na obra original), representada por signos sonoros e elementos de figurino e adereços (guarda-chuvas, capas). Os figurinos foram concebidos a partir da observação local, basicamente de três segmentos da sociedade: o pecuarista (os criadores na obra de Brecht), os trabalhadores dos matadouros (em geral, pobres), o que nos fez utilizar elementos como chapéus, cintos com fivelas country etc. Para os religiosos (Os Boinas Pretas, na obra de Brecht), adotamos um uniforme inspirado na vestimenta militar, tal como no Exército da Salvação, referência do dramaturgo alemão, mas buscamos aproximá-los, no comportamento e práticas, aos evangélicos e católicos tradicionais. Para isso, o principal elemento foi a adaptação de hinos e cânticos religiosos executados pelos atores.

Já para os industriais optou-se por manter uma certa distância do contexto local. Ou seja, na perspectiva local, sabe-se da existência e influências dessas personagens no cotidiano da região, mas apenas são vistos os pecuaristas, trabalhadores do manuseio de gado ou trabalhadores dos frigoríficos. Por isso, foram retratados com ternos, maletas e aparelhos de celular, com os quais se mantinham atentos a todos os movimentos do mercado financeiro e da greve dos trabalhadores.

Inicialmente, sete atores davam vida às personagens, depois passaram a ser seis. Todos os recursos, luz, efeitos sonoros, trilha eram executados pelos próprios atores que ficavam dispostos em duas filas nas laterais do palco, tendo ao seu lado cabideiros com os figurinos e adereços. O espaço cênico em si era livre, como na lógica do tapete.

Cena do espetáculo “A Santa Joana dos Matadouros”. Foto: Divulgação

Já em relação a “concreto CONTRA-FLECHA”, temos uma montagem resultante de um projeto denominado “Nossas Histórias – Achados e Inventos”, motivado pela tomada de consciência, por parte dos membros do grupo, que o integra desde meados da década de 2000, de que historicamente todos os membros e ex-membros tinham relações diretas ou indiretas com formação da cidade e as principais atividades econômicas que atraíram pessoas para a região: agricultura, garimpo, extração de madeira e trabalho no campo. Se não atuaram diretamente nessas áreas, seus familiares ou pais foram atraídos à região para o trabalho em algum desses setores.

A dramaturgia foi desenvolvida a partir do entrecruzamento de memórias pessoais dos atores do elenco, processo de formação da cidade e ficção.

O espetáculo é uma metáfora de construção de um grande empreendimento em um lugar fictício chamado “Matas Verdes”. Para isso tem como referências a construção civil, que nos levou a um cenário formado por andaimes, que servem de palco e superfície para várias cenas, e ao uso de objetos e utensílios típicos dos trabalhadores dessa área.

A trilha foi criada por um músico multi-instrumentista executada ao vivo lançando mão de um loop (vocal performer), instrumentos convencionais, como violão, flauta, harmônica, e objetos e materiais diversos facilmente encontrados em canteiros de obra.

Como constava no programa do espetáculo: CONTRA-FLECHA é uma estrutura provisória na construção civil para suportar o peso da laje durante a montagem e o período de cura do concreto. Foi utilizando esta metáfora que o TEAF edificou e agora traz concretamente ao público um espetáculo que entrecruza memórias, histórias, achados e inventos para tratar de explorações, ganâncias, contradições e batalhas. Cada um derramando o suor do próprio rosto ou usufruindo do suor alheio, segue perseguindo o seu objetivo de vida, buscando a realização dos seus sonhos, a construção das suas histórias, que assim como são deles, também são nossas.

A pandemia

Não sabemos ao certo se temos conseguido nos estruturar. Temos ficando muito preocupados com os desdobramentos e consequências de tudo isso. Estávamos em processo de ensaios de três trabalhos do repertório (“concreto CONTRA-FLECHA”, “Dom Quixote” e “Todo Mês Sangra”) para iniciar uma temporada contemplada pelo edital Descentrarte, da Funarte, e tivemos que suspender tudo. Não sabemos ao certo como vamos conseguir retomar as coisas porque no pós pandemia tudo será novidade. Pedimos orientação da Funarte via e-mail sobre questões burocráticas, prazos, vigência de convênio etc., mas não obtivemos retorno. Está tudo muito confuso e, no caso da Funarte, com trocas de gestão de cultura no nível federal e obscuridades nas políticas do governo, a coisa fica mais complexa. Não deu tempo nem de saber o que realmente a nova gestora pretende e veio a avalanche da pandemia.

Nós temos uma sede, o Espaço Cultural TEAF, que momentaneamente está fechada. Felizmente é uma sede própria e dentre as contas não temos aluguel, o que já é um alento. Suspendemos as temporadas mencionadas a pouco e as ações de outro projeto apoiado pelo Governo do Estado, que esperávamos o recurso sair desde 2017. Tomamos esta decisão em obediência às orientações médico-sanitárias e para não cair no erro de engrossar fileiras dos negacionistas e inconsequentes e negligentes para com a vida. Em Alta Floresta, como em muitos outros lugares, já até ocorreram carreatas, buzinaços exigindo reabertura. Se esquecem que sequer somos uma Itália no que diz respeito aos recursos médicos e hospitalares. Ou seja, aqui as condições são mais precárias. Temos notícias de existirem 10 UTIs com respiradores, mas a população da cidade é estimada em mais de 60 mil pessoas e somos polo para atender, no mínimo, outros seis municípios vizinhos. Por isso, nossa decisão tem sido colaborar e apoiar medidas de prevenção e distanciamento social. Sabemos que o retorno será complicado.

Mas não deixamos de fazer algo. Temos feito reuniões virtuais, leituras de textos e tocado algumas atividades burocráticas. Além disso, estamos iniciando conversação com a Secretaria de Estado de Cultura e Esportes para adaptar algumas ações do projeto conveniado para as condições atuais e realizar algumas atividades utilizando as redes sociais com lives, rodas de conversas etc.

Espaço Cultural TEAF. Foto: Divulgação

CULTURA EM CASA

Assim como outros equipamentos, a SP Escola de Teatro criou uma programação especial na internet para oferecer ao seus seguidores. Assim, está disponível na página #teatroemcasa uma série de conteúdos multimídia, como vídeos de espetáculos e de palestras e bate-papos de nomes como as atrizes Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg e Denise Fraga, a monja Coen, a escritora Adélia Prado e o pastor Henrique Vieira, além de cursos gratuitos a distância.

O acervo ainda inclui filmes produzidos pela Escola Livre de Audiovisual (ELA) – iniciativa da Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), gestora da SP Escola de Teatro – em parceria com instituições internacionais, com a Universidade das Artes de Estocolmo (Suécia).

#andançaspeloteatrobrasileiro #culturaemcasa #teatroemcasa



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