Norma Bengell e Ivam Cabral (Foto: Flavio Sampaio)
O Brasil perdeu, na madrugada de quarta-feira (9), uma de suas principais artistas. Aos 78 anos, a atriz Norma Bengell enfrentava problemas respiratórios havia seis meses. A atriz, no entanto, deixou um legado enorme à cultura do País, marcando na história suas atuações nos teatro e cinema. Polêmica e contestadora, a musa do cinema dos anos 1960 e 1970 protagonizou o primeiro nu frontal do cinema brasileiro.
Ivam Cabral, diretor executivo da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, conheceu a atriz e até contracenou com ela, na montagem de “Vestido de noiva”, que sua companhia de teatro, Os Satyros, levou aos palcos em 2008. Emocionado com a perda, Ivam Cabral escreveu um depoimento contando sua história com Norma. Leia abaixo e veja, na sequência, algumas fotos dos dois.
Norma, doce Norma
Em 2007, o Itaú Cultural iria lançar atualizações em sua Enciclopédia de Teatro, mantida pela instituição desde 2005. Das novidades, além da inclusão de novos verbetes, a incorporação de maquetes virtuais, dentre elas, a da antológica montagem de “Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues, dirigida por Ziembinski, em 1943. Nós, dos Satyros, fomos convidados para apresentar três cenas da peça.
Inicialmente, pensamos em trazer Maria Della Costa para trabalhar conosco nesta noite. Maria, que foi a Alaíde na afamada montagem, divisora de águas na história do teatro brasileiro, por algum motivo não pode participar. Foi assim que pensamos em Norma Bengell que, em 1973, na comemoração de 30 anos do texto, vivera a Madame Clessi na remontagem do espetáculo no Rio de Janeiro, recuperando sua direção original, pelo mesmo Ziembinski.
Norma recebeu com alegria aquele convite. Na verdade, não era a primeira vez que eu travava contato com a atriz. Há alguns anos, e talvez por intermédio de Lenise Pinheiro e Iris Cavalcanti, ou do Emilio Di Biasi, amigos dela, eu começara uma história com Norma.
Mas isso não importa. Porque, em junho de 2007, eu tive o prazer de conhecer Norma Bengell profissionalmente. E foi, de verdade, um grande encontro.
Fizemos aquela leitura e, devido à estrondosa repercussão, fomos imediatamente convidados para fazer a montagem integral do texto, que estreou, no mesmo Itaú Cultural, no início de 2008. E foi um sucesso enorme, talvez um dos maiores do Satyros e do Itaú Cultural, em termos teatrais.
Norma era intensa. Gostava de conversar. Ficava horas e horas atenta e completamente envolvida em qualquer assunto. Era capaz de falar de suas histórias ou de qualquer tema da atualidade, sempre com profundidade. Tinha inteligência acima da média. E uma ironia peculiar.
Quando veio trabalhar com a gente, estava bastante insegura porque, alguns meses antes,tinha sido substituída em uma montagem sob alegação de que não teria memorizado o texto. Se isso é verdade ou não, não importa. Conosco, Norma foi impecável. Sua Madame Clessi tinha uma intensidade e humanidade jamais vista. E eu pude contracenar com ela. Dentre várias personagens, eu fazia o namorado de Clessi e protagonizamos, inclusive, um beijo na boca.
Claro que não foi fácil trabalhar com Norma. Principalmente porque ela trazia em sua bagagem não só memórias do teatro brasileiro, mas, também, a história do cinema mundial. Sim, Norma foi estrelíssima da sétima arte nos anos 1960, chegando a trabalhar em Hollywood, após arrasar nas telas brasileiras e europeias daquele período. Segredou-me, certa vez, que teria namorado Alan Delon, só pra citar um dos seus muitos casos.
Então, como se recebe uma personalidade dessas em seu mundo? Principalmente no Satyros, um lugar sem nenhum glamour, onde encaramos a profissão como operários e não temos nenhuma relação com o devaneio?
Claro que Norma não era tão somente uma atriz. Era uma personalidade. Tão grande – ou maior – que o texto de Nelson. E eu sabia disso.
Nossa relação foi intensa, muito intensa. Nestes anos todos, e talvez por conta da nossa ligação com o Emílio Di Biasi, nos falamos constantemente.
Mas Norma vivia sérios problemas. De saúde e de finanças. Na verdade, ficou um tanto solitária nos últimos anos. Um pouco por sua culpa também. Porque, apaixonada pela vida, quanto aparecia alguém disposto a ouvi-la, ela se entregava de tal forma que assustava o seu interlocutor. Era muito amor. Tanto, que chegava a sufocar.
Norma morreu nesta madrugada. E o mais estranho – ou teria sido coincidência? – foi ela ter morrido poucos dias depois de Patrice Chéreau, seu grande amigo e parceiro no teatro. Porque Norma abalou, literalmente, Paris nos anos 1960, quando saiu das telas brasileiras para brilhar nos ecrãs europeus. E Chéreau esteve sempre por trás desta história, seja no teatro ou no cinema. Os dois foram amigos até o final de suas vidas. E sonhavam trabalhar juntos mais uma vez. Não deu tempo.
Outra estranha curiosidade: a trajetória de Norma foi lembrada, ontem, numa das seções do nosso portal, aqui na SP Escola de Teatro. Falamos sobre os 45 anos de sua arbitrária prisão, em 1968.
Mas não é dessa Norma que tantas injustiças sofreu, que tanto foi massacrada pela mídia, que eu quero e eu vou me lembrar pra sempre.
A Norma que vai continuar a me inspirar é a Norma dos encontros com o Emilio, em casa, na casa do Alberto, nos restaurantes, nos bares.
A Norma das noites incríveis que passamos juntos. A Norma louca, brigando com mendigos na Avenida Paulista dizendo que eles tinham que trabalhar, pensar no futuro.
A Norma que eu não vou esquecer é a que eu conheci, tão linda quanto sua imagem. Tão doce, tão doce…
Fotos: a primeira, da Cia. da Foto; as quatro seguintes, de Andre Porto; as duas últimas de Flavio Sampaio (2008)