por Sergio Zlotnic*, especial para o portal da SP Escola de Teatro
O diretor Maurício Paroni de Castro, coordenador do evento Chá e cadernos, novo espaço de discussões teatrais da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, em sua edição inaugural, propôs uma interessante reflexão sobre a “Suspensão de descrença”. Tema em sintonia com algumas posições de Freud e de Husserl, de Saramago e de Pessoa, de Schiller e de Ésquilo, como se verá a seguir.
Tomando a definição do poeta Luciano de Samósata, do século 2, Paroni nos explica que o conceito de suspension of disbelief “se refere à vontade de um leitor ou espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias”.
Vamos a Freud! Todo o trabalho no processo da psicanálise é o de criar condições de se estabelecer uma “conversa de cozinha”, exercício da língua materna. Das ambiguidades e da confiança. Esse é o terreno do segredo, do sagrado, do profano, da confissão, da intimidade.
Na cozinha ocorrem as melhores conversas. É ali que recebemos os amigos mais próximos. A cozinha é parte do universo informal. As censuras são amortecidas na informalidade, ao contrário do que ocorre na sala de estar. A boa conversa é descalça.
A cura pela palavra, sem químicas, é o que Freud desejou. Para isso, em 1912, ele desenha um mapa, na forma de recomendações. Ali está indicada a posição que o analista deve ocupar. É um lugar de escuta em que aquele que ouve se deixa guiar por uma atenção dita “flutuante”.
Essa atenção flutua sem pressa, sem buscar cedo demais extrair sentidos do discurso que se ouve, caminhando ao léu, pelo atalho da distração. Mais focada na forma que no conteúdo. A entrega a este estado implica abandonar a compulsão à lógica, ao entendimento, ao contorno, à nitidez… Descarrilamento dos trilhos cartesianos. Pois a alma só se dá a ver na penumbra!
Nesse quintal zen, não pode haver nenhuma pressão. O psicanalista renuncia até mesmo ao desejo de curar. Pois desejar curar pode significar, como fórceps, uma camuflada rejeição a uma parte cara e essencial ao paciente – embora quase sempre ele a maldiga. Sem memória e sem desejo, é o lema do psicanalista, na famosa imagem de Wilfred Bion (1897-1979), psicanalista inglês.
Vamos a Husserl! Novamente, sem memória, nem desejo! A distração é método na fenomenologia husserliana: ali encontramos a ideia de retornar às coisas mesmas. Sem maquiagem, sem ideias pré-concebidas, o investigador deixa-se unicamente impactar pela presença e singularidade do objeto de seu olhar. Permanecendo no nível do vivido imediato, anterior à reflexão. Pois, afastar-se deste solo originário, pré-reflexivo, significa perder a essência do fenômeno – que não está noutro lugar senão nele mesmo.
Na pré-reflexão, Freud e Husserl se encontram, ambos alunos de Brentano.
Pensar é, muitas vezes, afastar-se da verdade!
A postura pré-reflexiva é também condição do ato criativo, operação que envolve um descontrole em que o sujeito dá um salto de superação ao produzir o que quer que seja no campo das artes – e também na área das ciências: eureca é a sua expressão, palavra grega que quer dizer “encontrei”, celebração de descoberta.
Nesse espírito, diz o poeta: Mil vezes a experiência tem demonstrado, mesmo em pessoas não particularmente dadas à reflexão, que a melhor maneira de chegar a uma boa ideia é ir deixando discorrer o pensamento ao sabor de seus próprios acasos e inclinações, mas vigiando-o com uma atenção que convém parecer distraída, como se estivesse a pensar noutra coisa, e de repente salta-se em cima do desprevenido achado como um tigre sobre a presa (José Saramago – “O evangelho segundo Jesus Cristo”, 1991, grifo meu).
Interessante observar que Husserl nomeia essa postura pré-reflexiva de “suspensão fenomenológica”. Não seria ela aparentada com a “suspensão” que Paroni nos apresenta?
Todo ator sabe que no início de um espetáculo, nos primeiros décimos de segundo, a plateia faz um pacto implícito com o elenco. É um pacto de “suspensão”. Ela (plateia) se entrega ao jogo, ou não! Pois a boa-vontade – de tomar como verdade uma obra de ficção – requer que o espectador suspenda a sua crítica e se posicione numa atitude naif, semelhante à postura da criança quando brinca, cria, investiga e inventa o mundo.
A propósito, assim escreve Schiller, citado muitas vezes por Freud: a criatividade está ali onde a razão relaxou a sua vigilância!
Freud justifica a necessidade de se lançar mão desse método, a um só tempo, rigoroso e distraído: a crítica suprime fenômenos antes mesmo de eles serem percebidos pelo sujeito. A postura pré-reflexiva é, assim, mapa para tocar a alma! O caminho solar da ciência não conseguiu chegar à cozinha, área do conhecimento prenhe de um saber noturno.
Ésquilo já dissera: o deus dá poder àquele cujo pensamento vem à luz a partir da noite humana.
E, finalmente, Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro, o mestre, como se sabe, é o pregador por excelência desta mesma posição! Ele escreve:
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa …
A alma de um espetáculo, a sua essência, para ser apreciada, exige que o espectador feche os olhos e se entregue. Que ele se abandone a uma atitude de distração, que se parece talvez com um avesso da paranoia – não está o paranoico sempre em guarda? Sempre na desconfiança?
Há equivalência dessa posição distraída com os processos de sono e sonhos. Somente o sujeito descalço é capaz de adormecer! E sonhar. Mas isso fica para outra ocasião!
Em tempo: Ivam Cabral recentemente afirmou – sozinho não sou nada; mas com um sonho, sou um exército! – Verdade! Parodiando Cabral: um homem e o seu sonho são sempre multidão descalça!…
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