“Até mesmo o delírio carrega uma verdade histórica”. Sigmund Freud.
Na nova montagem da Cia Livre, “REVOLTAЯ”, esse mote de Freud parece examinado à exaustão! E o que se vê no palco é um exercício de potência teatral.
Os méritos são muitos nesse grande acerto. E o primeiro deles tem a ver com o processo de pesquisa, evidentemente extenso. O espetáculo foi gestado em um ano de investigações, fato que dá densidade à peça – e, inevitável, é visível à plateia.
Evidente também a criação executada a várias mãos. Ali há um trabalho coletivo de investigação. Os atores são “atores-pesquisadores”, de fato e de direito (conforme ficha técnica – e mesmo que disso não soubéssemos) – e toda a equipe envolvida no projeto é de artistas implicados.
O resultado é um trabalho artesanal potente, de estranha beleza, em que as artes visuais encontram as artes cênicas.
Caleidoscópica, a movimentação de cenários, com timing ao mesmo tempo caótico e preciso, joga a plateia numa espécie de exposição viva, como se quadros de Dali ou Bruegel ou Bosch se materializassem e em seguida desaparecessem. Museu mutante que desfila diante do espectador (ao invés de vice versa!).
Ao problematizar memórias e fatos (políticos e domésticos), o espetáculo escolhe um caminho peculiar, que já traz nele embutido um método (arcaico). Explico.
Os integrantes da trupe parecem se submeter, confiantes, ao fluxo da pesquisa. Como se o fluxo tivesse algo a dizer e, assim, fosse ouvido com orelhas de elefante. Escuta maiúscula!
Para isso, tem de haver entrega. Mérito aqui da direção de Vinicius Torres Machado – que tem o desafio de, numa imagem, fazer a equipe inteira adormecer e sonhar. E, para que o sonho se dê, é sempre necessário que haja entrega – tática milenar de driblar resistências.
Para tocar a alma – e especificamente para as operações criativas no campo das artes – porosidade é a palavra de ordem.
Ao adormecer, há uma posição particular – de vulnerabilidade – a ser adotada. É preciso que nos abandonemos ao fluxo das representações, que se distribuem numa teia complexa. E, num labirinto, desfilam pelos cenários psíquicos, exibindo-se a nós. Até a um ponto tal que quem conduz o espírito não é mais o sujeito cartesiano – mas alguém nele. Então, bem aí, adormecemos. Pois!
É desse modo que parece ter sido a pesquisa do grupo da Cia Livre de Teatro: ouvir o processo, como se ele fosse um terceiro, numa Escuta elevada à máxima potência!
E, então, contemplar os acasos – e permitir que vozes estrangeiras se manifestem indicando percursos. Fé na bússola!
Nesse diapasão, como na frase de Freud, a Cia. se dedica a uma exaustiva busca de ligar e desligar verdade histórica e delírio, produzindo um caldo onírico de loucura, procedendo a deslizamentos de imagens e colagens de discursos. Cacos. Fragmentos. Estilhaços.
Assim como, assumindo riscos, a trupe parece ter se deixado levar por esse fio da meada poderoso (método freudiano de livre associação, em que a atenção flutua), também nessa posição o espectador, de seu lugar, deve entregar-se: sem buscar sínteses, nem entendimentos, nem lógicas, nem nitidez. Pois o trabalho exige da plateia a mesma coragem que a Cia encampa: a de deixar as sobras do sem sentido ali, intactas, pairando. Inexplicadas.
Generosa dramaturgia essa que consente em funcionar às vezes apenas como um fundo de som. Pois, nesse caso, a linguagem plástica da peça se torna tão exuberante que, em certos momentos, eclipsa a outra linguagem, composta “apenas” de palavras.
Num elenco afinado, destaque para a excelente Lúcia Romano. Destaque também para a Iluminação de Eduardo Albergaria: modulando luz e sombra, trabalho fundamental num espetáculo que se dá a ver nas bordas das artes plásticas.
Finalmente, em momentos tão sombrios quanto os dias que correm, o trabalho estende um véu esgarçado sobre a História recente, de um lugar simultaneamente mítico e real. Sobre os esforços de se fazer um país-nação. Sobre as costuras de lembranças e lapsos de estórias pessoais (e não por isso menos importantes) – que se conectam a acontecimentos sociais, compondo um tecido de descontinuidade.
Mérito último, esse tema sensível é tocado longe de qualquer facilidade panfletária. Longe de toda compulsão pedagógica. Desembocando numa narrativa necessariamente inacabada.
Coisa rara, quando a peça acaba, a plateia não sabe o que dizer.
As produções das artes, quando fecundas, parecem sempre nos obrigar a um tempo de silêncio e de digestão.
Cala fundo tudo aquilo que é bom!
ESPETÁCULO: REVOLTAЯ Memórias de Ilhas e Revoluções
Ficha Técnica – Dramaturgia Dione Carlos – Livremente inspirada na obra “Fui Soldada de Fidel” de Renata Palottinni – Direção Geral Vinicius Torres Machado – Atores-pesquisadores Donizeti Mazonas, Edgar Castro, Lúcia Romano, Sergio Siviero e Sofia Botelho – Iluminação Eduardo Albergaria – Realização Cia Livre
Serviço – TEMPORADA: De 27/03 a 02/05/2018 – Terças e quartas, às 21h
Centro Cultural São Paulo – Rua Vergueiro, 1000 – (11) 3397-4002
Sala: Espaço Cênico Ademar Guerra
Recomendação etária:: 14 anos
Duração: 100 minutos
Valor do ingresso: R$ 30,00 (inteira) R$ 15,00 (meia entrada)
Lotação do espetáculo: 77 espectadores
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com