1 – Na Psicanálise, uma dificuldade clínica é descobrir que caminhos traçar quando estamos diante daqueles pacientes muito trancados, muito engessados, muito defendidos, que nem sequer cometem atos falhos (que, lembremos, são involuntários e inevitáveis).
Pois a peculiaridade do sujeito, a sua marca, a sua cara, o seu rosto, só se dá a ver no erro, no descarrilamento, na perda de controle, na falha! Quando então ele mostra o que não pretendia ou o que não desejaria.
Noutros casos, igualmente difíceis, o paciente permanece sempre em guarda, apegado ao nível do puro relato, incapaz de transformar seus traços de caráter em sintoma. O sintoma é caleidoscópico, aponta saídas, desliza, se transforma, dialoga com o entorno e com seu tempo. Os traços de caráter são cristalizações surdas e mudas e impermeáveis.
O relato é avesso às livres associações: ele vai pelo asfalto, num caminho geométrico! O paciente do relato se segura com freio de mão puxado para impedir a eclosão de qualquer performatividade. A não ser que considerássemos o próprio relato – aprisionado no terno e na gravata dos “fatos efetivamente ocorridos” –, ele mesmo uma performance branca, cuja função estaria em esconder, e não revelar. Na sua pseudonarratividade, o paciente do relato narra apenas seu medo de narrar!
Por preguiça, temos sede de absoluto. Desejamos respostas! A história oficial da própria subjetividade é repetida à exaustão por aqueles que se apavoram com a verdade da história extraoficial dos afetos, esta que é sempre úmida, instável, inexata, cambiante, flexível, provisória, relativa, fugidia… A versão extraoficial dá trabalho!
Talvez este fato seja uma das razões pelas quais a palavra saúde é, muitas vezes, estranha às construções psicanalíticas. As noções de saúde se vinculam à palavra “conserto”. Já a ideia de doença se conecta com a palavra “concerto”. Conhecer os desvios particulares de cada pessoa é o que interessa no consultório: a loucura de cada um (como já disse aqui recentemente).
Pois esse viés (de cada um) revela um modo de interpretar a realidade. Revela os esforços gauches e comoventes que cada pessoa improvisou para se entender no mundo, na sua dolorosa liberdade e solidão. O modo com que cada um constrói e interpreta o universo de acordo com suas condições, inclinações, suas sinas, desejos, limitações…
E mais! O divórcio do sujeito consigo mesmo se dá a ver justamente nos tropeços: é dali que ganham visibilidade as vozes dissonantes e contraditórias que habitam um mesmo ser…
2 – Na linguagem médica, a anamnese é o procedimento para extrair informações relevantes do paiciente. Esse é um processo de ego, em que não há lugar para divagações. São dados históricos objetivos que o especialista quer recolher do paciente para chegar a um diagnóstico. É um relato o que o médico espera e deseja. Nada de exegeses! Poder de síntese é o que impera.
Diferentemente da posição da medicina, utilizando um método antagônico, na psicanálise é a associação livre que vigora. A atenção do paciente e do psicanalista flutua livremente, visitando o que for que lhe apeteça, ao sabor do acaso. Vale tudo, de bananas a figos, de um abajour a uma toalha, carne moída a farofa, fiapo de lembrança, fragmento de sonho… Irrelevâncias desconectadas e espalhadas na dispersão.
Também no teatro, nos processos criativos, de pesquisa e investigação, o elenco e toda a equipe se abandonam a esta atenção relaxada – afastada da simples compilação de informações.
O artista, em geral, parece prezar as associações livres de preferência aos procedimentos ligados à anamnese. Distrair-se é charme no mundo das artes, enquanto que valorizar excessivamente o foco fica relegado a outras profissões menos glamorosas (e mais obsessivas).
Isso é uma estereotipia, claro! Pois mesmo na fase de levantamento de dados e de informações de qualquer pesquisa no campo das artes, os aspectos apolíneos e cartesianos e cronológicos do processo têm que comparecer, para serem adiante devorados, deglutidos, transformados numa massa dionisíaca, cuja temporalidade passa a ser a de kairós.
Da mesma forma, inversamente, um médico competente (e toda a ciência) não estaciona simplesmente na objetividade: ele tem que se entregar também a uma espécie de devaneio nublado que precede o insight.
A série televisiva que melhor ilustra isso é “House”, em que o doutor que dá nome a ela (Dr House) entra num tipo de breve transe, logo antes de solucionar os casos enigmáticos. E é sempre um acaso, uma informação fortuita que, na distração, se liga a algum outro dado aparentemente irrelevante e que leva a umaeureka! Iluminação! Satori! Despertar! (a propósito, ao tratar do tema da “atenção”, num artigo de 2010, Contardo Calligaris recorre justamente a Dr House).
Talvez possamos sintetizar, a grosso modo, essas duas atitudes distintas e complementares, da ciência e das artes (muito embora, como se disse, elas nao sejam estanques), da seguinte maneira: enquanto a anamnese é solar e diurna, conectada à vigília, a associação livre é feita de um caldo onírico. Numa dança, é a luz fazendo oposição à penumbra.
3 – Pois juntando esses dois conceitos extraídos da psicanálise, André Ramalho Castelani escreveu um original estudo de dramaturgia (Anamnese e associação livre como estruturas dramatúrgicas na peça “As folhas do cedro”), fruto de longa pesquisa que culmina na sua defesa de mestrado na UNESP, sob orientação do Prof. Dr. José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez, em 2012.
Elevando as ideias de anamnese e associação livre ao patamar de categorias de dramaturgia, Castelani, nessa investigação, como que põe no divã a peça de Samir Yazbek (“As folhas de cedro”). O resultado é um trabalho notável de diálogo entre o teatro e a psicanálise, especialmente interessante porque concebido desde o lugar do dramaturgista.
O próprio trabalho de Castelani vai num crescendo, da coleção de dados até as complexas articulações que encontramos no último terço da tese. Nessa parte de suas considerações, o pensamento decola, inaugurando uma sintaxe própria, original, híbrida, bilíngue, filha de dois cenários, o teatral e o psicanalítico.
Antes disso, na dissertação, há um longo capítulo que apresenta a história do teatro, e que avança pelas diferentes escolas que fazem o desenho do homem através dos tempos. Um homem que vai adquirindo cada vez mais densidade e espessura, habitado por contradições, paulatinamente recheado de mais conflitos e desencontros. Culminando nos dias atuais, o estudo chega a um homem desbussolado (termo que Castelani toma de empréstimo de Jorge Forbes), habitado por vozes estrangeiras em seus porões: alteridades exigindo lugar nas novas linguagens que o teatro produz.
Esse estudo de Castelani tem a ver finalmente com a construção da memória – e o espetáculo de Yazbek cai aí como uma luva para as suas considerações. Pois ele (Yazbek), na confecção da peça, recorre a elementos documentais e a marcas mnêmicas menos exatas (porque mais ligadas ao desejo). E, no palco, através de uma espécie de “mapa de areia”, vemos a demarcação concreta de territórios, que Castelani, em sua análise, classifica, numa gradação que vai do fato ao sonho. Do acontecimento (traumático, muitas vezes) ao desejo…
Tomara essa dissertação se transforme em livro, e frutifique em diálogos com outros autores de campos diversos. Pois o resultado aponta para várias direções e permite múltiplos links com os temas, por exemplo, da narratividade e da performatividade no teatro.
4 – De minha parte, ficaria feliz em ser capaz de seguir as costuras que o estudo de Castelani oferece, particularmente fazendo cruzamentos entre o depoimento do puro relato e o outro, que ousa narrar. Mas isso ultrapassa os muros da clínica psicanalítica, evidentemente.
Essa tese se articula com o teatro narrativo, que se distingue do relato: o épico, com seus espasmos performativos, está presente na narratividade. Apesar de conter marcas históricas, que lhe dão peso e concretude, a narrativa não busca obsessivamente fidelidade aos fatos – porque sabe que eles são irrecuperáveis. Narratividade assim estabelecida mantém a sua potência e faz função de metáfora: transporta o homem para outro lugar. Somos arrancados do conforto.
A liberdade de contar estórias, desrespeitando os trilhos impostos pela anamnese (em que a verdade da metáfora não prospera), transforma a memória. À moda de Xerazade, nos labirintos da narratividade, por mil e uma noites, adiamos nossa morte!
“Bom teatro é teatro simples e necessita de concretude, metáfora e alteridade”, disse Mauricio Paroni de Castro.
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com