Sábado último, dia 21 de junho de 2014, no Teatro da SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt, estreou a peça “Não vejo Moscou da janela do meu quarto”, concebida, dirigida e escrita por Silvana Garcia, num espetáculo poderoso, que nos arranca do lugar. Tocando temas que talvez nem sequer pretendesse, como ocorre com a boa obra no campo das artes, “… Moscou…” vai muito além de quaisquer contingências históricas, ou circunstâncias de qualquer ordem.
O trabalho se constitui numa metáfora da cifra humana – e, justamente por ser maior, apesar das referências do texto que nos permitem inferir alguma data, parece situado fora do tempo: pelo menos de um tempo circunscrito a este ou aquele lugar, ou a esta ou aquela época.
A peça discute as construções, desconstruções e reconstruções a que somos exigidos, a cada passo de nossos caminhos tortos e singulares – e faz caber muita coisa em seus 70 minutos de duração, num trabalho comovente que nos transporta e nos faz migrar.
Problematizando a condição humana confrontada com a transitoriedade das coisas – de nossas minúsculas vidas, infinitas de sonhos e de projetos e de esperanças! –, mágica e felizmente, o resultado como que escapa de seus criadores e alça voo livre, ganha vida própria, impondo-se enorme diante de nós. Desembocando numa exaustão da alma, por assim dizer, como que flagrada em registro fotográfico. A última cena é de uma beleza que arde, um retrato emblemático que parece murmurar: somos cada vez mais pobres, desamparados e munidos de precárias armas!
Proeza notável, de nossas cadeiras no teatro assistimos à captura de algo oculto, que age nos subterrâneos: vozes estrangeiras que nos submetem, nos atraem, nos expulsam, não nos dão trégua… Duas grandes forças que se opõem entre si são convocadas a ocupar o palco: aquela que nos move adiante e aquela que nos pressiona à permanência ou ao retorno.
Generosa direção, em que os três afinados atores parecem livres para compor, à vontade para habitar os espaços cênicos que eles mesmos inauguram. O texto frequentemente faz brechas nos diálogos. Intervalos em que cessam as palavras, mas em que outra linguagem se insinua nos gestos, numa emocionante aula de dramaturgia.
A palavra, e a sua dimensão poética, é nosso último refúgio. Mas mesmo conservando a poesia, é doloroso o espelho em que nos miramos nessa peça. Donde a sua envergadura enquanto obra, e a inquietação que nos provoca: seu reflexo dói – ele mostra um percurso em que ficamos cada vez mais reduzidos e mais desprovidos de tudo…
Apoiado em Tchecov (“As três irmãs”) e Cortázar (“Casa tomada”), canibalizados pelo espetáculo, o teatro de Silvana Garcia se levanta e migra, inaugurando outra coisa. Um ponto de chegada, talvez; ou um ponto de partida. Para então, no fim do espetáculo, pousar congelado, numa fotografia amarelada que encara o público.
Ao equacionar assim as coisas, o trabalho se conclui num desencontro essencialmente trágico: mesmo quando chegamos a pisar onde sonhamos, não é mais ali o lugar que mirávamos ou que imaginávamos. Não chegamos nunca onde pretendemos e nos fixamos demais onde não desejamos. Ironia! Descompasso!
É assim que vemos em cena o desejo, ele mesmo, interrogado. Através de desenhos de luz, instala-se no palco uma topografia cruel, geradora de crescente claustrofobia: os personagens são expulsos, ou cabem cada vez menos em seus quadrados. O desejo não cabe em si!
Deslocamentos se sucedem num moto perpétuo, condenando a múltiplas separações. Sobram cartas e pistas e objetos densos de memória deixados para trás, numa espécie de rastro que registra nossa história – e também nossa miséria.
Inteligente, o espetáculo sugere, mas não fecha. Deixa-nos completar as figuras esboçadas. Ou nos deixa na indecisão, ou na angústia, ou no desamparo. Ou no luto pelos sonhos sonhados que ficaram perdidos por esse rastro. Sonhos escoados pelos ralos da vida… Silvana Garcia não prova nada, nem demonstra nada, sinal de coragem e respeito pelo espectador.
A peça aponta para o estrangeiro que hipnotiza, seduzindo com miragens que estamos sempre perseguindo e buscando conquistar. Miragens flutuantes, na iminência de se desmancharem. E que nos confrontam com o dilema de partir – e abandonar alguma coisa muito cara, ou permanecer – e abandonar alguma coisa muito cara. Sem saída!
Para além das falas, instaurando pausas de palavra, o espetáculo se faz também e especialmente nos olhares dos atores que, me parece, vão se intensificando, involuntariamente. Olhares úmidos de desejo. Culminando nessa cena final, achado de potência teatral, que – ela sim – inverte a operação: o retrato finalmente nos olha e reflete. Somos retratados pelo retrato, que devolve nosso olhar – desejante, úmido, migrador…
Ao tocar essa corda, a companhia de Silvana Garcia inunda o palco.
Enfim, eis aqui a felicidade do encontro de boa direção, bom elenco e bom texto. E os apoiadores da empreitada, que (entre outras contribuições) fizeram doações para que o espetáculo se concretizasse, devem sair pensando: como resultou fecundo, nesse caso, o Projeto Catarse!
Longa vida a esse espetáculo. Longa vida ao teatro.