“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”
Gilberto Gil, em “Copo vazio”).
Há muito tempo se anuncia que o olhar – a imagem – irá eclipsar a linguagem. Em 1982, na cidade de Nova York, o seminário “Quando faltam palavras” apresentava uma defesa ferrenha da cultura visual sobre a linguagem escrita. Para o artista alemão Johannes Molzahn, “[…] a imagem fotográfica será uma das armas mais eficazes contra a intelectualização, contra a mecanização do espírito”. O artista também afirmava: “Esqueça a leitura! Olhe! Será esse o lema da Educação. Esqueça a leitura! Olhe! Será a linha fundamental de conduta da imprensa”.
Essa breve introdução se faz necessária para abordar minha percepção ao fotografar a performance de “Pisc in À”, com a atriz Maria Cecília Mansur, no aconchegante espaço cedido pelo Armazém Cultural, no bairro de Pinheiros, na capital paulista. Durante todo o tempo – não o chronos, mas o kairós – da apresentação, esqueci de tudo que já havia lido e fotografado e me pus a olhar para aquele corpo se movendo no espaço, na tentativa de reaprender a olhar.
A investigação se vale de uma piscina portátil como objeto alegórico para trazer à tona grande parte das reflexões formuladas por Zygmunt Bauman e o seu conceito de mundo líquido – que denuncia, entre outras coisas, as fragilidades das relações humanas. O trabalho é repleto de imagens tão potentes que, muitas vezes, fazem submergir a palavra utilizada na cena e as palavras com que tento teorizar a experiência vivida e transformada em imagens. A força das imagens, na encenação e nas fotografias, tenta “vencer”, na minha percepção, a função dos textos escritos e falados.
A dramaturgia (de Dione Carlos), a direção artística (de Isadora Dias), a direção (de Fernando Gimenes), a trilha (de Loop B) e o desenho de luz (de Diego Gonçalves), têm a grande habilidade de se colocarem como plataforma para o grande mergulho da atriz em direção ao vazio, à imersão em busca de memórias dos prazeres da infância em contraposição às neuroses existenciais do cotidiano da vida adulta.
Essa tentativa de retenção da experiência, do seu registro e conservação, apesar da passagem do tempo, também foi atribuída por Sigmund Freud como caracterização da fotografia. Como se se tratasse ao mesmo tempo, analogamente como a fotografia, de revelar e apagar a representação das atividades psíquicas. Assim como a piscina rasa de Maria Cecília, uma foto não tem profundidade, não passa de uma superfície e sempre esconde outra, atrás, embaixo ou em torno dela. Não acreditar no que se vê. Despertar da consciência da imagem para a consciência do pensamento. É com esse exercício de leitura da imagem que podemos fazer uma relação entre o que vimos e o que continua impregnado na fotografia, nas relações humanas.
Para Bauman, tentando fugir da solidão nos distanciamos da ideia de solitude: uma sublime condição na qual a pessoa pode “juntar pensamentos”, ponderar, criar e refletir sobre eles, dando sentido à comunicação – que tantas vezes nos distanciamos por estarmos imersos em objetos modernos de controle social.
Assim como na dialética da canção de Gilberto Gil, o mergulho no vazio – muitas vezes apresentado nas obras de Samuel Beckett – que Maria Cecília nos convida a fazer, tem o poder de nos arremessar para um imenso mar de conflitos e tensões a que estamos constantemente imersos nesses dias que seguem.
Obrigado, Mansur.
Bob Sousa é fotógrafo de teatro e mestrando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Mate.