Comentário sobre o espetáculo “Cíclico”, de Gabi Costa – Setembro 2023, na Oficina Cultural Oswald de Andrade
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Quanto tem de biográfico na produção de um artista? Mesmo quando ele não quer, ou não sabe, ou não pretende?
E quando ele pretende?
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Bem, o espetáculo de Gabi Costa é formidável tratamento de digestão simbólica, em que acontecimentos pessoais e históricos são elaborados, diante do espectador.
Acontecimentos que dizem respeito à atriz, mas que – devido à potência de seu salto – a ultrapassam, e dizem respeito então (não só a ela) também a outras mulheres e a outros homens, negros ou não.
Se o mergulho é suficientemente profundo, dizem os sábios, o pesquisador engata num lençol freático que subjaz e liga os poços de água de um país inteiro. Gabi Costa liga dois continentes.
Vê-se que a investigação da atriz é antiga, de fôlego, de impacto. Ela está implicada ali. Comprometida. Nas vísceras.
Quanto tempo ela teria levado em sua pesquisa até desembocar na temporada?
Trata-se de uma peça que exige entrega também da plateia: que ela se deixe hipnotizar. Ou que desperte para a realidade adormecida – e para as violências que hibernam, recalcadas nos porões da alma. Retirar os amortecedores habituais, parece ser o lema.
Numa exposição corajosa, Gabi Costa cria dois territórios distintos. Eles se comunicam?
De um lado, abre-se um espaço quase lúdico, mas traiçoeiro. Atravessado por questões irrelevantes (‘este copo é de cristal? – ou de acrílico?’). É a preparação para uma festa?
De outro lado, se descortina o registro denso, habitado de massa trágica, desafiando os limites do insuportável.
O trabalho da atriz é daquele tipo que demanda tempo de digestão para o espectador -, que vai processando a cada dia aquela matéria apresentada na sessão de 70 minutos. Não cabe justamente ao bom artista arrancar a plateia de um lugar de conforto?
É o conceito freudiano de ‘estranho familiar’ que comparece – e é ali costurado no palco, com competência e (melhor) sem pedagogia.
Há repetições bem a calhar, elementos que insistem, e que a atriz e dramaturga faz caber num impressionante sonho, relatado – mais de uma vez – no espetáculo.
Aquilo que se repete (porque pede ainda elaboração) serve também ao espectador: ajuda-o a compor um quebra-cabeça desafiador que a peça compõe.
E a gente vê a atriz testando alquimias, in loco, na frente do espectador, como quem experimenta receitas culinárias, conferindo os ingredientes de que dispõe.
E, na construção dessa equação, em que impasses vitais são inseridos, há liberdade para retomar e verificar sempre e novamente o que dá errado (na peça, na vida, na festa, na família, na sociedade, nos destinos humanos) -, numa notável sintonia com o pensamento de Beckett, ‘tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor’.
É assim que, no espetáculo, graças aos deuses, muitas coisas dão errado – de propósito. Inversão genial.
Por fim, não é possível deixar de reconhecer no trabalho o tema da ancestralidade. Gabi Costa parece buscar resgatar e construir um percurso retroativo. Se, da tradição de um povo, há pouco ou nenhum registro, não há escapatória: a artista inventa um percurso. Como quem tenta lembrar-se de um sonho (justamente) que, no entanto, não se deixa apanhar. Essa operação de adivinhar no escuro é talvez a essência do campo das artes: adivinhar no escuro e (Lispector diria) acreditar chorando.
Assistir às tentativas desse regate é comovente.
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Em tempo: são ótimos e artesanais, figurino e cenografia, iluminação e sonoplastia.
Tomara o espetáculo volte brevemente em nova temporada.
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Ficha técnica
Atuação, Texto e Concepção. Gabi Costa
Direção. Mariá Guedes e Thais Dias
Cenário. Evas Carretero
Preparação Corporal. Ciça Coutinho
Iluminação. Danielle Meireles
Fotos. Cléo Martins
Designer Gráfico. Luna Ákira
Trilha Sonora. Camila Couto
Figurino. Thais Dias
Adereços. Gabi Costa e Mariá Guedes
Colaboração Artística. Meg Pereira
Orientação Dramatúrgica. Tatiana Ribeiro
Operação de Som. Camila Couto e Carolina Gracindo
Operação de Luz. Julia Orlando e Felipe Stucchi
Cenotécnicos. Evas Carretero, Murilo Inforsato e Sergio Murilo
Assistente de Produção. Lua Negrão
Bate-papo pós espetáculo. Cris Guterres e Siméia Mello
Workshop Dança Afro. Juliana Ferraz
Produção. Gabi Costa e Corpo Rastreado
Assessoria de imprensa. Rafael Ferro e Pedro Madeira
Realização. Cia La Desdeñosa
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Serviço
A peça esteve em temporada de 6 a 16 de setembro de 2023 – quarta a sexta – 19h30 – sábados e feriados – 18h – ingressos gratuitos distribuídos com uma hora de antecedência – local: Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro, São Paulo – SP
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Sobre o autor
Sergio Zlotnic é psicanalista, doutor em psicanálise, pesquisador no campo das artes e investigador dos diálogos entre as artes cênicas e a psicanálise. Colaborador e colunista da SP Escola de Teatro desde a sua fundação, é ainda autor do livro de ficção “Baleiazzzul” (2013), e dos livros teórico-clínicos “Gestalt Terapia e Transferência” e “A Metapsicologia da Atenção Flutuante” (ambos de 2017). Integra o Coletivo de Teatro Cia Os Zzzlots.
Autor da coluna zzzlotnic, no site da SP Escola de Teatro. Leia seus outros textos aqui.