Texto: Ferdinando Martins
Até hoje, Dercy Gonçalves é uma das artistas mais conhecidas do país, povoando o imaginário popular pela irreverência de uma velha desbocada e sexualizada. Esse estereótipo não corresponde à riqueza de sua biografia, cuja trajetória profissional revolucionou expressões que vão do teatro de revista à mídia televisiva, com novas formas de fazer humor e desvencilhando-se de maneirismo da atuação brasileira até então. Sua vida particular, porém, contradiz os estereótipos e os estigmas a ela associados.
Dercy era, ao mesmo tempo, libertária e recatada, tímida e espalhafatosa, ingênua e despudorada. Quinze anos após sua morte, não havia ainda nenhum espetáculo em sua homenagem. Com Grace Gianoukas no papel título, _Nasci pra ser Dercy_, texto e direção de Kiko Rieser, veio suprir essa lacuna de maneira contundente. Não por acaso, as sessões estão lotando desde sua estreia, em janeiro, no Teatro Itália Bandeiras, e agora em segundo temporada no Teatro Frei Caneca.
Ao invés de uma Dercy desbocada, soltando palavrões a torto e a direito. _Nasci pra ser Dercy_ optou por um outro caminho, destacando a seu legado artístico e moral. Desveste Dercy das alcunhas que lhe foram impingidas: não é a puta, nem a doidivana. É a mulher vítima do patriarcado como tantas, é a artista que teve de cavar seu espaço em um ambiente competitivo.
Não se trata de uma obra documental, mas de uma dramaturgia alicerçada em acontecimentos reais, destaca seus atos de coragem, as muitas constrições sociais que Dercy teve de lutar e romper até chegar ao reconhecimento e ao estrelato. A peça começa simulando um ambiente virtual. Uma atriz faz o teste para o papel de Dercy Gonçalves, tendo como interlocutora uma máquina, cuja voz é de Miguel Falabella.
A alteração entre a atriz aspirante a ser Dercy e a diva propriamente dita é indicada por adereços criados por Eliseu Cabral. São simples e eficientes, sem apelar para barroquismos. Aos poucos, a atriz e vão se confundindo, em um jogo de espelhos. O ambiente virtual evocado no início e no fim da peça contrasta com os arranjos e jeitinhos personalistas de formas antigas de se fazer teatro, tão afeitas à crueldade do brasileiro cordial. Marca não somente a passagem do tempo, mas de uma era que se acabou.
Kiko Rieser vem se revelando, cada vez mais, um autor de nuances e sutilizas, de entrelinhas e implícitos. Seus textos são inteligentes, revelando pesquisa e amor ao teatro e ao ofício de de escrever. É o diapasão perfeito para o estilo de atuação de Grace, mulher de personalidade única e estilo de atuação ímpar, ela mesma um clássico de nossa história. Que Nasci para ser Dercy_ tenha vida longa como sua homenageada.
Bob Sousa é fotógrafo, mestre em Artes pela Unesp, crítico e jurado de Teatro da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) e crítico e jurado de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura
FICHA TÉCNICA
Texto e direção: Kiko Rieser
Atuação: Grace Gianoukas
Voz off: Miguel Falabella
Cenário e figurino: Kleber Montanheiro
Desenho de luz: Aline Santini
Trilha sonora original e arranjos: Mau Machado
Canção “Malandrinha”: Freire Júnior
Canção-tema “Só sei ser Dercy”: Danilo Dunas e Pedro Buarque
Visagismo: Eliseu Cabral
Assistência de direção: André Kirmayr
Preparação corporal: Bruna Longo
Preparação vocal: André Checchia
Colaboração no processo: Fernanda Lorenzoni
Assistência de figurino: Marcos Valadão
Cenotécnica: Evas Carreteiro
Design gráfico: Letícia Andrade (Nós Comunicações)
Assessoria de imprensa: Flavia Fusco Comunicação
Mídias sociais: Inspira Comunicação
Fotos: Heloísa Bortz
Direção de produção: Paulo Marcel
Produtores associados: Fábio Hilst e Kiko Rieser
Elaboração de projeto: Kiko Rieser
Assessoria jurídica: Ana Capozzi
Realização: Ventilador de Talentos
Duração: 60 minutos.