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Quando o corpo fala | Entrevista com a companhia de teatro gestual Dos à Deux

Publicado em: 07/03/2023 |

 

Criada há 25 anos na França por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, a Cia. Dos à Deux, hoje sediada no Rio de Janeiro, é um dos principais coletivos do país. Por meio de expedientes que combinam teatro gestual, dramaturgia visual e paisagem sonora, o duo consegue produzir espetáculos sofisticados em que signos verbais são supérfluos à narrativa. A dupla multipremiada, que já se apresentou em mais de 50 países, estreou na sexta-feira (3) em São Paulo a montagem “Enquanto você voava, eu criava raízes”, em cartaz no Sesc Santo Amaro até 2 de abril, e cedeu uma entrevista para o portal da SP Escola de Teatro.

Espetáculo Infância, de Graciliano Ramos, entra em cartaz na próxima segunda (6), na SP Escola de Teatro

 

Confira a entrevista: 

Resumir 25 anos de trabalho à frente da Cia. Dos à Deux não é tarefa fácil. Você poderia destacar, contudo, algumas mudanças significativas em suas pesquisas com o teatro gestual ao longo desse período? Quais os expedientes técnicos ou estéticos que você julga terem se transformado mais radicalmente desde o início do grupo?

Artur Luanda Ribeiro – É difícil mesmo falar sobre esses 25 anos em poucas palavras, mas eu poderia destacar que o que iniciou essa pesquisa minha junto com o André foram essas dramaturgias visuais, em que o texto não é o motor da narrativa, pois elas são constituídas a partir de vários elementos e estilos. Nos dois primeiros trabalhos, nos inspiramos muito em Beckett, então havia uma escritura dramatúrgica que apresentava um caminho clownesco, permeado pela dança, com muitas pontuações. Na primeira peça, entrávamos numa dramaturgia descosturada, em que o ator clownesco navegava com humor dentro dessas partituras gestuais da espera.

Já em “Aux Pieds de la Lettre”, nosso segundo duo, continuamos essa pesquisa do palco nu, com poucos objetos e um cenário mutável, que acaba sendo um terceiro personagem, um condutor da narrativa e também um condutor da dramaturgia, seja como espaço ou ritmo, formando camadas metafóricas, como a mesa que vira várias coisas e por fim acaba se transformando num barco, o barco da saída dessa loucura, que era o tema da peça.

A gente rompe tudo isso com “Saudade em Terras d’água”, quando começamos uma outra maneira de elaboração de nossas dramaturgias, que é realmente se colocar em um trabalho de mesa, de escrever uma história. Era uma epopeia, um trabalho sobre imigração ecológica. Então a gente fez a trilogia sobre a família, com “Saudade em Terras d’água”, “Fragmentos do Desejo” e “Irmãos de Sangue”. Nesses três espetáculos, tivemos um trabalho de mesa, em que escrevemos obras totalmente teatrais, como se a gente estivesse escrevendo um texto, só que sem texto, porém com todas as nuances, com todos os conflitos, com todas as personagens etc. Depois dessa obra escrita, íamos ao palco e começávamos a transpor aquelas metáforas que havíamos escrito em papel.

Por exemplo, em “Fragmentos do Desejo”, o jantar entre o filho e o pai acontecia numa frieza absurda, em que nada era dito – porque eles não se falam mesmo, e não porque o espetáculo não tinha fala, mas sim porque existia um silêncio velado ali –, porém tínhamos que transpor esse silêncio de alguma maneira, então a gente transpôs isso com uma mesa que teoricamente começava perto, a um metro e meio um do outro, e aos poucos essa mesa, de forma mágica, e com ilusão, vai se distanciando e aumentando infinitamente até ficar com 12 metros, então vão se instalando metáforas por meio do cenário e das imagens, dando apoio, assim, àquela dramaturgia que nós elaboramos no papel. Portanto havia um trabalho complexo, porque tínhamos que nos inspirar para transpor esses conflitos para luz, para o corpo, gesto, coreografia, cenário, enfim, todas as camadas. Por fim, fechamos com “Irmãos de Sangue”.

Em seguida, tivemos uma ruptura bem radical com “Gritos”. Naturalmente tivemos nesse entremeio o espetáculo “Ausência”, no meio desse percurso, que foi um exercício de estilo nosso, ao trazer Luís Melo para dentro de nosso universo poético, ao tirar a fala dele, colocá-lo dentro de um universo completamente estilizado, coreografado, muito preciso, portanto um outro caminho, uma outra pegada de direção. Mas voltando a “Gritos”, lá a gente rompeu com tudo isso, tiramos o ator, adaptamos bonecos aos nossos corpos, fragmentamos as personagens, mostrando o esfacelamento dessa humanidade que está em frangalhos, em ruptura, numa falta de amor tamanha, que era o tema do espetáculo, rompendo, assim, o que a gente vinha fazendo, ou seja, epopeias, dramaturgias com fio linear.

O argumento do novo espetáculo, “Enquanto você voava, eu criava raízes”, pulsa entre vetores que são resultado das manifestações do medo. Como foi o processo de criação? O momento político (do Brasil e do mundo) e pandêmico motivou, de alguma forma, a temática ou a estrutura da montagem?

Foram praticamente dois anos de criação, pelo adiamento da estreia, causado pela pandemia, portanto foi um processo bem longo. Começamos com a palavra propulsora do “medo”, mas isso foi se diluindo, porque fomos indo muito para a abstração e para uma pesquisa muito mais híbrida, bebendo na mitologia, nas artes plásticas, uma pesquisa imagética, do cinema, do qual nos aproximamos, dessa fusão de corpos que se entrelaçam com as imagens e que cria um ilusionismo em 3D. A gente foi se debruçando em cima do tema do abismo, do duplo, do ser perder para se resgatar, dos abismos em si, fomos para uma abstração desse arquétipo do homem que se perdeu e que tenta se resgatar. Esse foi o fio final de nossa condução.

A Dos à Deux utiliza de vários dispositivos abstratos e alegóricos em seu repertório, seja em peças distópicas (“Ausência”) ou que gravitam pautas sociais e contemporâneas (“Gritos”), por exemplo. De que forma vocês se apropriam da estilização para a criação dessas atmosferas oníricas?

Dentro dessa pesquisa da estilização, em cada criação há algo novo que estamos investigando, utilizando nossos corpos como fio condutores, com eles evoluindo pela maneira que queremos contar essas histórias e se comunicar com o público. Na trilogia de “Irmãos de Sangue” trabalhamos com o pseudorealismo, dentro de um universo simbólico sobre a memória e a fraternidade, com corpos livres, corpos coloridos, corpos que navegam entre vários estilos de jogos teatrais e de estilização. Posteriormente, com “Gritos”, tivemos essa ruptura, essa comunicação do ator com seu personagem e a fragmentação dos bonecos, o que trouxe um distanciamento e um olhar mais metafísico para os arquétipos do homem contemporâneo.

Agora, com “Enquanto você voava, eu criava raízes”, nós rompemos isso e tiramos essa palavra, vou dizer entre aspas, “personagem”, e nos colocamos dentro de corpos que são plásticos e que não têm uma linha de leitura única. Eu acho que estamos em uma camada muito mais metafísica, do ser humano em suas dores, em sua duplicidade, e a gente se coloca como um elemento dentro do todo. Nesse espetáculo, a cenografia, as imagens e a luz, tudo vem como um quebra-cabeça que se junta e vira uma grande fábula sobre si, sobre a evolução do ser humano e sua transformação, sobre o modo como nos metamorfoseamos. Essa estilização de nossos corpos que vai beber nas artes plásticas, na pintura e na escultura, é um outro passo em termos de teatralidade e fisicalidade.

Por: Marcio Aquiles.




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