1 – O escudo da fragilidade
No primeiro semestre deste ano, em 24 de maio, num experimento na SP Escola de Teatro, um dos grupos de aprendizes apresentou um exercício cujos ecos chegaram até mim. Vultos! Eis o que tenho, apenas uma cena (créditos ao final do artigo):
Uma mãe paulatinamente vai sendo tiranizada pelos filhos. Até ao ponto de ser feita de cadela e, por eles, cavalgada – como num avesso daquilo que se vê em “A casa de Bernarda Alba”, de Lorca.
Bem a propósito das questões ligadas ao Criancismo (que foi o material de trabalho do semestre), assiste-se a uma inversão na equação de assimetria que põe o adulto zelando pelo desamparo da criança. O resultado desse fenômeno social que abunda nos dias que correm – e o espetáculo denuncia – é algo que poderíamos chamar de “tirania da fragilidade”!
Numa espécie de preconceito às avessas, o desamparado, sadicamente ou não, subverte as relações de dominação, aproveitando-se das vantagens da desigualdade, e da culpa daqueles que ocupam (provisoriamente) o lugar de poder. Poder que, no fundo, forçosamente concluímos, se revela (ele sim) tão frágil.
“O criado” é o filme de Joseph Losey, de 1963, em que se verifica essa mesma inversão. O criado (Dirk Bogarde) reverte os lugares pré-marcados e acaba por submeter o patrão (James Fox) – a quem deveria servir – fazendo-o obediente ao seu comando.
Bem a propósito, em seus textos aqui no Portal, Mauricio Paroni de Castro já mencionou dois outros filmes igualmente emblemáticos para discussão desse tema: “Pixote”, Brasil, Hector Babenco, 1981; e, “Pai patrão”, Itália, Irmãos Taviani, 1977 (de onde adapto o título desta coluna).
Outro exemplo bem mais recente: “Precisamos falar sobre o Kevin”, filme de Lynne Ramsay, 2012, com uma Tilda Swinton magistral! O filme poderia se chamar “Cria-se um monstro” – ou Kevin já teria nascido monstruoso?!
Senão no cinema, nas ruas das grandes cidades constata-se cotidianamente o mesmo fenômeno. Motoqueiros! Frágeis, passam pelos carros aterrorizando motoristas apavorados! A fragilidade pode ser eficaz bandeira de deturpação de qualquer lógica, inclusive moral – como um escudo covarde.
De tal forma que um homicida, num exemplo não hipotético, caso seja pobre, passa a ser automaticamente apontado pela voz do povo como vítima; enquanto o assassinado, caso seja rico, é culpado pela violência que sofreu – antes mesmo que fatos sejam conhecidos.
Não vou comentar a monumental carga de preconceito que existe nesse avesso; preconceito contra o pobre, entenda-se bem, que sequer teria o direito de não ser bom…
2 – Báscula…
a) Mesmo fora do âmbito social, sabemos que muitas vezes o poderoso e o fragilizado mantém uma relação hipnótica que de fato pode se inverter rapidamente. Eis porque Freud abandona a hipnose como técnica de cura e de pesquisa do psiquismo. Não é raro que o hipnotizado reverta a situação, enviando contraordens que o hipnotizador não percebe – mas obedece! De modo que verificamos que inverter o jogo faz parte do jogo! Um espelho essencial a esse tabuleiro: nas maiores desigualdades, os extremos ocupam posições equivalentes.
b) Há uma piada em relação aos experimentos da Psicologia Comportamental, escola psicológica conhecida como Behaviorismo. Numa única imagem, um cartunista desenhou um rato em sua gaiola de laboratório olhando para o alto, para o pesquisador, e dizendo a outro rato ao seu lado: “condicionei esse cientista, cada vez que eu aperto a alavanca aqui na gaiola ele libera uma gota de água para mim”!
Não parece que os conceitos de espelho e de um duplo tenham sido incluídos nas articulações dos comportamentalistas…, ou terão sido?! É o que o cartum nos leva a interrogar…
c) Nos espaços privados, nos jogos de senhor e escravo, na vida sexual, as prisões de continuidade especular são parte nuclear da cena, e indicam a reversibilidade das relações de poder, à moda de Foucault. A báscula é ingrediente erótico…
d) Finalmente, com Levinas, o rosto do desamparado dispara um apelo animal de continência que captura o adulto e o faz prisioneiro: uma ordem de cuidado da qual não se escapa!
3- Maternidade
Recebo no consultório nos últimos anos algumas mulheres que não desejam ter filhos. Raspando o limite biológico, na casa dos quarenta, examinam a questão mais por protocolo do que por outro motivo.
Talvez não seja surpreendente! Listo quatro argumentos:
a) Colocar limite em criança hoje tornou-se sinônimo de truculência;
b) O Estado tem decidido regular certas intimidades. A intromissão desse olho terceiro subtrai qualquer espontaneidade, fomenta paranoias e é pedagogicamente ineficaz: não favorável ao cultivo de afetos;
c) Ser tiranizado pela fragilidade de crianças, cujas adolescências se esticam para bem além dos trinta, pode ser desanimador; e,
d) Caiu em desuso constatar que, quando algo não dá certo, a culpa pode não ser dos pais.
4- Alguém poderia, por favor, ressuscitar Sartre aqui pra nós?!
5- Ficha Técnica do Experimento compartilhado pelo Núcleo 1 do módulo Azul de 2014:
Título: “Estranha lucidez”. Atores: Beatriz Vicente; Carolina Delphim; Mateus Rodrigues; Murilo Rocha; Sofia Abreu; Teresa de Almeida Prado. Diretores: Douglas Lima; Vinícius Albano de Sousa. Iluminadores: Fernanda Guedella; César Bento. Dramaturgia: Ricardo Vagnotti Neto. Cenógrafos/Figurinistas: Ana Olyveira; Sueliton Martins; Flávia Toledo. Técnicos de Palco: Claudia Ferreira; Ana Sobanski. Sonoplastas: Ariane Molina; Gilmar Dias. Orientadora: Lavínia Pannunzio.
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com